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Um extrato do livro "As Intermitências da Morte" de Saramago, que eu adaptei, especialmente ao nível da pontuação, uma vez que o referido senhor tem a mania de não usar os sinais de escrita convencionais, preferindo levar tudo "a eito", com virgulas, maiúsculas e pontos, dificultando assim a leitura.
Tomem muita atenção à pontuação, para perceberem todo o sentido das frases.
«Em poucas palavras se conta [a fábula da tigela de madeira], e aqui a vamos deixar para ilustração das novas gerações (...). Atenção, pois, à lição de moral. Era uma vez, no antigo país das fábulas, uma familia em que havia um pai, uma mãe, um avô que era o pai do pai e uma criança de oito anos, um rapazinho. Ora sucedia que o avô já tinha muita idade, por isso tremiam-lhe as mãos e deixava cair a comida da boca quando estavam à mesa, o que causava grande irritação ao filho e à nora, sempre a dizerem-lhe que tivesse cuidado com o que fazia, mas o pobre velho, por mais que quisesse, não conseguia conter as tremuras, pior ainda se lhe ralhavam, e o resultado era estar sempre a sujar a toalha, para já não falar do guardanapo que lhe atavam ao pescoço e que era preciso mudar-lhe três vezes ao dia, ao almoço, ao jantar e à ceia. Estavam as coisas neste pé e sem nenhuma expectativa de melhora quando o filho resolveu acabar com a desagradável situação. Apareceu em casa com uma tigela de madeira e disse ao pai: "A partir de hoje pasará acomer aqui, senta-se na soleira da porta porque é mais facil de limpar e assim já a sua nora não terá de preocupar-se com tantas toalhas e tantos guardanapos sujos.". E assim foi. Almoço, jantar e ceia, o velho sentado sozinho na soleira da porta, levando a comida à boca como lhe era possível, metade perdia-se no caminho, uma parte da outra metade escorria-lhe pelo queixo abaixo, não era muito o que lhe descia finalmente pelo que o vulgo lhe chama o canal da sopa. Ao neto parecia não lhe importar o feio tratamento que estavam a dar ao avô, olhava-o, depois olhava o pai e mãe, e continuava a comer como se não tivesse nada que ver com o caso. Até que uma tarde, ao regresar do trabalho, o pai viu o filho a trabalhar com uma navalha um pedaço de madeira e jugou que, come era normal e corrente nessas épocas remotas, estivesse a construir um brinquedo por suas próprias mãos. No dia seguinte, porém, deu-se conta que não se tratava de um carrinho, pelo menos não se lhe via sitio onde se lhe pudessem encaixar umas rodas, e então perguntou: "Que estás a fazer?". (...) o filho, sem levantar a vista da operação, respondeu: " Estou a fazer uma tigela para quando o pai for velho e lhe tremerem as mãos, para quando o mandarem comer na soleira da porta como fizeram ao avô.". Foram palavras santas. Cairam as escamas dos olhos do pai, viu a verdade e a sua luz, e no mesmo instante foi pedir perdão ao progenitor e quando chegou a hora da ceia por suas próprias mãos lhe levou a colher à boca, por suas próprias mãos lhe limpou suavemente o queixo, porque ainda o podia fazer e o seu querido pai não.»
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